Sobre gentes, arquitecturas e cidades

Patrícia Santos Pedrosa | 28 de Junho de 2021

Sobre gente, arquitecturas e cidades

 

Cada dia que passa é-me mais difícil definir arquitectura e cidade. O que é estranho, considerando que crescemos e vamos ampliando reflexões, possíveis respostas, novas palavras e conceitos que deveriam ajudar a nomear mais coisas, acontecimentos e desejos. Ou mesmo por isso. O espaço, entidade invisível e sensível que junta cidade e arquitectura, é das matérias de trabalho – reflexão e acção – mais complexas. Complexa porque múltipla e complexa porque se encontra intimamente relacionada com as dimensões pessoais e colectivas de todas e de todos. Em última análise, eu existo porque o meu corpo existe no espaço.

A ideia de que as arquitecturas e as cidades se cumprem na satisfação do olhar, do belo que se observa, é minorá-las. Os corpos têm outras condições que lhes permitem ser no espaço. Menos tangíveis, mas mais viscerais, mais sociais. Corpos e espaços cumprem-se uns nos outros. Os corpos são diversos, tal como os espaços. Para lá da sua condição material, os corpos são social e culturalmente construídos e sobre eles recaem hierarquias espessas das quais resultam estruturas de privilégio e opressão (fortes/fracos, brancos/negros, homens/mulheres, jovens/velhos, ricos/pobres,...). Também os espaços se organizam através das suas condições simbólica e materialmente desiguais e tantas vezes intimamente relacionadas com as anteriores. Corpos, existências e espaços complementam-se nas justiças e nas injustiças.

Quando cruzamos as diversas existências pessoais cruzamos igualmente os papéis que os nossos corpos representam nos espaços que habitam. O que sou no meu bairro é diferente do que sou fora dele, o que sou em casa é diferente do que sou no meio da cidade. Enquanto corpos/vidas que se deslocam nos espaços urbanos e arquitectónicos cumprimos de diversas formas as condições de privilégio e exclusão. Corpos/vidas com diferentes possibilidades de concretização da cidadania plena. Espaços contentores de direitos ou da sua ausência, habitados por corpos e vidas que carregam esta dualidade dos direitos ou da sua ausência.

Num contexto social onde a falta de igualdade é efectiva e afecta parte significativa da população de modo grave, não podemos deixar de pensar nas cidades, nos bairros, nas casas como plasmações destas desigualdades. Não podemos fazer de conta que temos cidades, espaços públicos, casas, museus ou escolas verdadeiramente democráticos enquanto às vidas que acontecem nestes espaços não lhes é permitida essa plena dimensão.

No que à prática da arquitectura e da cidade diz respeito não podemos esquecer dois artigos fundamentais da Constituição da República Portuguesa, que devem ser permanentes matérias-primas de trabalho: o Artigo 13.º, que define o “Princípio da igualdade” e da não discriminação e o Artigo 65.º que, relativo à “Habitação e urbanismo”, deixa claro como os espaços – domésticos (da casa) ou públicos (da cidade) – são palcos de direito de cidadania. Porque, no que diz respeito à vida colectiva que vivemos, nenhuma pessoa é cidadã se outra pessoa não o for; tal como nenhuma pessoa deve ser excluída do seu direito humano de ser tratado com plena justiça, justiça espacial incluída. Casa vez que achamos, arquitectos e arquitectas, que pensar e fazer arquitectura e cidade se encontra num universo paralelo ao dos direitos e da cidadania, ao do bem comum, estamos a trair a nossa responsabilidade de fazedores e fazedoras de mundos mais justos.

Ou tomando de assalto o Sérgio Godinho sobre a liberdade, concretização de democracia plena, interessa não esquecer que:

“Só há liberdade a sério

Quando houver

A paz, o pão, habitação, saúde, educação”.

E habitação é, naturalmente, tanto a individual como a colectiva: das casas às cidades.

 

 

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