A reverência pela perfeição e o poder da irreverência

por Arquiteto Miguel Saraiva

A reverência pela perfeição e o poder da irreverência

Sou um tipo irreverente e a minha arquitetura é um reflexo trabalhado da minha personalidade. Mas o traço dos meus desenhos foi evoluindo numa luta permanente com a minha irreverência. Desde que me conheço como arquiteto que os traços dos meus desenhos carregam esta tensão.

Quando entrei no curso de arquitetura pouco desenhava. No primeiro ano da universidade, um exercício de desenho levou-me a passear pelas ruas de Lisboa e a professora considerou o trabalho um péssimo exemplo de um desenho de um aluno de primeiro ano. Hoje, percebo que na altura não tinha o traço esperado para aquela fase da vida de estudante, que é a fase de comunicar as ideias através do desenho.

Porque sou um homem de ideias firmes fui trabalhando o meu traço, e foram as mesmas ideias firmes e o meu pé sempre no futuro que me levaram a fundar a S+A, em 1996. Já há 25 anos ou só há 25 anos? A minha evolução enquanto arquiteto confunde-se com o crescimento do meu ateliê.

Somos mais de uma centena de arquitetos espalhados pelos quatro cantos do mundo, com obra feita em Astana, Bogotá, Assunción, Sidi Bel Abbès, Nur-Sultan ou Qinhuangdao. Desenhamos e ajudamos a levantar hotéis, museus, edifícios de habitação, escritórios, espaços para exposições ou reabilitações, projetos para os quais fui escolhido – porque nunca escolhi os meus projetos – e cuja paternidade nunca hei de renegar.

Quando acabo de projetar, entrego uma ideia desenhada que acrescenta e complementa o espaço onde a obra vai crescer. O contexto dessa geografia humana, urbana e temporal é determinante. Desenhamos no presente, amarrados a um passado, atirando essas linhas carregadas de significados e de saberes para o futuro. E nesse breve tempo em que o futuro não chega, ganho tempo para refletir sobre a obra que já foi pensada e desenhada, construída e erigida, e chego inevitavelmente à conclusão de que se tivesse de começar tudo de novo, faria melhor ou talvez diferente. Está visto que tenho uma relação muito litigante com os meus edifícios. Nascem sempre de um processo criativo violentíssimo, submerso numa angústia palpável que ultrapassa o bom senso. Agarrada à obrigação de apresentar o melhor projeto possível cresce a ânsia de entregar um projeto de altíssima qualidade.

Desengane-se quem pensa que o desenho do arquiteto tem de ser um desenho bonito. Mas é a ideia inicial que dá origem ao edifício que eu me comprometo a desenhar e à qual sou extremamente leal, que mais do que ser bela esteticamente, tem de se cruzar em harmonia com o espaço que vai ocupar e com o tempo em que vai viver. Só assim ultrapasso o desafio do projeto. Certa vez, pediram-me para colocar 80 mil m2 técnicos num espaço enclausurado em Picoas. Foi da superação deste desafio que desenhei o novo edifício da Polícia Judiciária em Lisboa que foi controverso, maldito silenciosamente. Também silenciosamente fez o seu percurso de integração e hoje, de onde quer que o vejamos, sentimos que faz parte. A cidade é isto, linhas de força que forçam a entrada no plano, no espaço, nas vidas e que, concluído esse processo, acrescentam, desafiam e enriquecem.

Percorri estes 25 anos sozinho porque não tive a sorte de ser orientado por um mestre da arquitetura, um ritual de passagem importante na formação profissional de qualquer arquiteto. Aprendi desenhando, rabiscando, apagando e tentando novamente, para a frente e para trás, ininterruptamente. Sinto-me mais experiente e experimentado e sei que consigo desenhar tudo o que pedirem. Estou, por isso, pronto para entrar numa nova fase da minha arquitetura que, embora nunca experimentada, não me será totalmente desconhecida.

Costumo dizer que aos 50 anos a arquitetura de um arquiteto renasce. Vivi tão intensamente os últimos 25 anos, mergulhando de cabeça em todos os meus projetos, que sinto que acumulei uma experiência e uma posição no mercado que me permite alcançar outro patamar na minha vida enquanto arquiteto: a minha irreverência.

O meu traço permanecerá simples e depurado, não fugindo muito à essência que fui descobrindo. Continuarei a ser um funcionalista e a gostar de desenhar para os outros, mas conquistei a maturidade para poder desenhar como quero, libertando-me da obrigação de ter de justificar o pensamento que ficará traçado no meu desenho num estado mais fiel a mim próprio. Porque já posso.


 

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